Já imaginou você não ter acesso a cuidados médicos, remédios, exames, consultas etc. por que não tem dinheiro para custear tudo isso? Isso já foi uma realidade no Brasil. Antes do SUS, o acesso à saúde pela população estava dividida basicamente em duas categorias: cidadãos que contribuíam para o seguro social por terem carteira assinada, e que usufruíam dos serviços do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social); e, do outro lado, cidadãos sem emprego formal, e portanto, sem acesso à instituições públicas de saúde e que dependiam da assistência oferecida por hospitais filantrópicos, como as Santas Casas de Misericórdia, ou custeavam seu acesso à saúde com o próprio dinheiro.
Se você não se lembra dessa época (ou se teve a felicidade de já nascer com o SUS em funcionamento), pergunte para uma pessoa que viveu nas décadas anteriores à criação do SUS o que significava ficar doente e não ter condições de se tratar.
A implantação do SUS, a partir de 1988, promoveu uma mudança radical no acesso à saúde no país. A grande diferença passou a ser o entendimento de que a saúde deveria ser um direito de todos, em vez de algo vinculado ao emprego ou ação de caridade. E esse entendimento demandou uma mudança total na estrutura e na organização da oferta de saúde no País, porque colocou o Ministério da Saúde no centro do gerenciamento, com a participação ativa da União, dos estados e dos municípios.
Essa descentralização teve como objetivo fortalecer a formação de uma rede capilarizada e regionalizada de apoio à saúde, que pudesse de fato atender a todos, em qualquer lugar do país.
Basicamente, o dinheiro vem da arrecadação dos impostos pagos por todos nós, brasileiros e brasileiras. E quando a gente fala em imposto, a gente está falando de todos os impostos mesmo, até aqueles que estão embutidos no alimento que a gente compra no supermercado e que tem um ou vários impostos vinculados a ele – e que, muitas vezes sem saber, estamos pagando.
Assim, os recursos do SUS são financiados pelo dinheiro arrecadado de tributos e contribuições federais, estaduais e municipais, ou seja, impostos variados pagos pelos cidadãos e pelas empresas. Dentre os tributos federais, estão o Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas, o Imposto de Produtos Industrializados (IPI); dentre os estaduais, estão o IPVA e o ICMS; entre os municipais, o ISS e o IPTU, apenas para citar alguns. Além desses impostos, a União transfere parte dos seus impostos para estados e municípios, que somam aos valores dos seus tributos para compor sua receita para saúde.
Apesar de a ideia de financiamento compartilhado entre todos os entes, originalmente a União deve ser a maior financiadora da saúde no país por ser a maior arrecadadora de impostos, se comparada a sua receita com estados e municípios – mas isso vem mudando e muito nas últimas décadas
O Ministério e os representantes do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) definem juntos as normas que regem o Fundo Nacional de Saúde e todas as decisões sobre medidas para o funcionamento do SUS são definidas por Comissões Intergestores em âmbitos nacional, estadual e municipal.
Percebe que há muita gente envolvida e muitos conselhos trabalhando juntos para definir o que é melhor para o nosso SUS? Isso é uma das características que faz dele um sistema de saúde democrático e abrangente.
A estrutura de atendimento do SUS se divide em dois blocos: um relativo à atenção básica ou primária – sob responsabilidade dos municípios –, e o outro, que contempla as ações de média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar – a cargo de União e estados.
A atenção básica é entendida como o primeiro nível da atenção à saúde no SUS, a “porta de entrada”. A UBS ou Posto de Saúde que fica perto da sua casa e de onde você pode marcar consultas, tomar vacinas, ser atendido por um agente comunitário, se informar e se cadastrar em programas de saúde, entre outras coisas, é um exemplo de atenção básica. As Unidades de Saúde da Família são outro exemplo e compõem o Programa Saúde da Família, que visa promover ações para a promoção e proteção da saúde, a prevenção de doenças, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde.
Embora inclua um rol de procedimentos mais simples e baratos, e que atendem à maior parte dos problemas comuns de saúde coletiva, envolve estudos aprofundados e de importante conhecimento empírico, de prática médica.
Já os procedimentos de média e alta complexidade se referem a atendimentos de especialidades, cirurgias ambulatoriais também especializadas, exames que demandem uso de equipamentos mais elaborados (ultrassonografia, por exemplo), até apoio à tratamento de doenças crônicas e específicas, como de câncer, cirurgias intervencionistas, procedimentos de reabilitação, transplantes, entre outros que envolvam mais tempo de acompanhamento e infraestrutura.
(...) a Constituição da República estabeleceu que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, cabendo ao poder público ‘dispor nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado’ Para muitos fica a impressão de que a Constituição não definiu se a saúde deve ser considerada um bem público ou um serviço a ser comprado no mercado. Na realidade, essa ambiguidade resultou nos embates e acordos políticos no processo constituinte. Representa o que foi possível conquistar naquele momento pelos deputados que defendiam a criação do SUS, embora viesse a ter consequências problemáticas depois. Segundo a Constituição, as ações e serviços públicos que compõem o SUS seriam complementados mediante contratos com serviços privados que, nesses casos, deveriam funcionar como se fossem públicos. Assim o SUS seria organizado a partir de uma rede regionalizada e hierarquizada de serviços de saúde, com estabelecimentos públicos e privados contratos, sob a égide do direito público”
Jairnilson Silva Paim
Entre as décadas de 1960 e 1980, até a implementação do SUS, o governo federal subsidiou a expansão dos serviços particulares de saúde. Ou seja, empresas privadas, que têm lucro e cobram dos seus clientes por seus serviços, tiveram apoio financeiro do governo para crescer e se expandir no mercado, comercializando seus produtos de saúde: planos de saúde, hospitais e estruturas particulares de oferta de saúde (clínicas, laboratórios etc.)
Quer dizer, então, que antes do SUS o governo não financiava a saúde da sua própria população, mas financiava empresas privadas para que elas oferecessem seus serviços à população e ainda lucrassem com esses atendimentos? A resposta para essa pergunta é bem simples: sim. Quando o SUS foi criado, estima-se que quase 70% da oferta hospitalar no país era privada ou filantrópica. Em alguns estados e municípios, eram as únicas estruturas de saúde em funcionamento, de fato. Ou seja: se a pessoa não tivesse acesso ao Inamps, por exemplo, ela deveria arcar com o próprio tratamento, mesmo sem ter condições financeiras para isso.
Embora a nossa Constituição garanta que a saúde é um direito social (Artigo 196), ela também diz que a saúde é livre à iniciativa privada (Artigo 199). Isso significa que empresas privadas estão autorizadas a transformar a saúde e suas questões em um comércio. As contradições em torno dessa questão são alvo de discussão até hoje. Dentro do SUS, a iniciativa privada pode atuar de forma complementar. Desta forma, aquilo que o sistema não consegue ofertar, o estado ou município pode pactuar com a iniciativa privada, que é o que acontece, por exemplo, com parte da alta complexidade: compra de leitos hospitalares, serviços diagnósticos, tratamentos de câncer etc.
Isso traz uma entrada do privado no público muito grande no SUS, com destinação substancial de recursos públicos para subsidiar essas estruturas. Atualmente, discute-se inclusive a participação das redes particulares na atenção básica, algo que nunca aconteceu antes.
Diferentemente da implantação do National Health Service (NHS), o sistema público inglês, em que o governo assumiu os hospitais do setor filantrópico, aqui no Brasil, aconteceu exatamente o contrário: a iniciativa privada passou a ser subsidiada pelo SUS, onde o nosso sistema público de saúde continua subsidiando as empresas particulares de saúde, que continuam tendo lucro em cima de atendimentos que, por sua vez, poderiam ser feitos pela rede pública do SUS.
O Brasil gasta muito pouco em saúde, isso precisa ficar claro para as pessoas definitivamente. É claro que, com o desmonte do Estado brasileiro, e dada a importância do setor saúde na economia e para a sociedade, nós investimos bastante, mas esse bastante é absolutamente insuficiente para garantir um modelo de proteção na área da saúde, sobretudo considerando nossa pobreza, nossa desigualdade, a violência social nas regiões metropolitanas, os baixos níveis educacionais e culturais da sociedade. (...) Definitivamente o bloco histórico sanitarista tem que dizer em alto e bom som para a sociedade, sem medo, que nós gastamos muito pouco e provavelmente por isso, sim gastamos mal. Por quê? Porque boa parte dos problemas de gestão do SUS decorre dos problemas de financiamento.
Carlos Ocké
Economista, doutor em Saúde Coletiva (IMSUERJ) e pós-doutor pela Yale School of Management (New Haven, EUA) e membro da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres).
Ajude a colocar a defesa e a melhoria do SUS como pauta prioritária na próxima eleição.