Para entender os avanços que o SUS promoveu na assistência à saúde no país, é preciso conhecer o que existia antes dele. Olhar a história brasileira é se deparar com uma trajetória de desigualdades. O acesso à saúde era então um privilégio para poucos.
Desde o Brasil Colônia até o Império, apenas a elite, formada por membros da realeza e Forças Armadas, tinha acesso regular a medicamentos e tratamentos médicos particulares. As camadas populares viviam em condições precárias, expostas à febre amarela, peste bubônica e difteria. Geralmente as pessoas adoeciam e, quando muito, tinham atendimento em casas de misericórdia, santas casas ou outras entidades filantrópicas, onde a mortalidade era altíssima.
Foi apenas na década de 1910, que um grupo de médicos, formado por nomes como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Emílio Ribas, iniciou a movimentação pela organização sanitária do país. Ainda assim, as ações eram pontuais, com foco no controle da disseminação de doenças específicas, como lepra, tuberculose e varíola.
Com o crescimento das grandes fábricas, a partir da década de 1920, parte da classe operária, com carteira assinada, passou a acessar os serviços médicos oferecidos pelas empresas. Também nessa época, teve início a Previdência Social no Brasil, quando trabalhadores com direito a aposentadorias e pensões passaram a ter o acesso a alguma assistência médica. O cuidado à saúde permanecia excludente.
O Ministério da Saúde só foi criado em 1950, quando começou a estruturação de estratégias de promoção, proteção e recuperação da saúde, mas ainda algo muito isolado e muito distinto da assistência oferecida pelas medicinas individuais, voltadas apenas para quem tinha previdência ou carteira assinada.
Formado pela imensa maioria de população miserável e que sucumbia às doenças mais associadas à pobreza – desnutrição, verminoses, DSTs e chagas parasitárias -, o Brasil pedia reformas. Sanitaristas já debatiam um plano de saúde pública unificada, quando o país sofreu o Golpe de 1964. A ditadura interrompeu o que era a semente do SUS.
O governo militar sustentava uma organização de acesso à saúde totalmente apoiada nos recursos captados pela previdência, com destinação de verbas públicas às empresas donas dos planos particulares, que construíam e ampliavam hospitais privados. Os casos de corrupção e desvios se avolumaram, e a gestão da saúde era um caos. Cerca de 70% dos brasileiros não podiam pagar por nenhum tratamento médico, e apenas 30% da população tinha acesso à saúde, ou via previdência, ou via vínculo trabalhista.
Somente os brasileiros que estivessem vinculados ao mercado formal de trabalho e com carteira assinada tinham acesso à assistência médica da previdência social. Aos demais restavam poucas opções: pagar pelos serviços médicos e hospitalares ou buscar atendimento em instituições filantrópicas, postos e hospitais de estados ou municípios. Como o direito à saúde não estava vinculado à condição da cidadania, cabia aos indivíduos a responsabilidade de resolver seus problemas de doença e acidentes, bem como os de seus familiares.
Jairnilson Silva Paim
Trecho do livro “O que é o SUS” (Editora Fiocruz, 2009), de Jairnilson Silva Paim, em que é descrito como era o acesso à saúde do país em 1966, quando todos os institutos previdenciários de várias categorias laborais foram unificados com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).
Foi nessa conjuntura que se formou um movimento para pensar uma resposta coletiva para o problema do acesso à saúde. Ao mesmo tempo, pessoas recém-formadas em universidades públicas colocavam em prática ações experimentais, amparadas pelas gestões municipais, como em Montes Claros (MG), Campinas (SP), Nova Iguaçú (RJ) e Londrina (PR).
A 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, foi um momento-chave na história da saúde do país. Foi nela que as ideias concebidas pelo movimento sanitarista encontraram um momento político propício, além de um contexto social efervescente e questionador dos retrocessos promovidos pela Ditadura Militar. O documento final da conferência reuniu as ideias para uma proposta de política de saúde que foi debatida na Assembleia Constituinte de 1988.
Nascia ali o SUS, o principal mecanismo para concretizar a saúde como um direito social. Pela primeira vez na história, a saúde foi reconhecida como um direito, como consta no Artigo 196 da Constituição Federal de 1988: Um direito de todos e um dever assumido pelo Estado. A definição da saúde como um direito estava totalmente alinhada à construção democrática de um país que saía de uma ditadura: uma sociedade que pudesse ser baseada em princípios não de mercado, mas de justiça social.
Dessa forma, o SUS fortaleceria o papel do Estado no seu caráter redistributivo, a gestão passaria a ser descentralizada e o acesso universal à saúde se tornaria uma realidade para a população brasileira.
Justiça Social: Entende-se que o conceito de justiça social está relacionado às desigualdades sociais e às ações voltadas para a resolução desse problema. Com isso, a justiça social consiste no compromisso do Estado e instituições não governamentais em buscar mecanismos para compensar as desigualdades sociais geradas pelo mercado e pelas diferenças sociais.
Não existe no mundo uma nação com características socioeconômicas parecidas com as do Brasil que tenha conseguido implementar um sistema de saúde como o nosso, com assistência à saúde tão ampla e integral como a que é oferecida pelo SUS. E é por isso que ele também é tão único.
A cultura brasileira é uma cultura da desigualdade, não é uma cultura da igualdade. Então o SUS, nesse sentido, é mais do que reformista, ele é revolucionário, porque ele introduz uma ideia de igualdade em uma das sociedades mais desiguais do mundo.
Sônia Fleury
Cientista política e uma das idealizadoras do SUS.